Começar o dia irritado nunca é boa coisa. Comigo isso é sempre o prelúdio de muitos aborrecimentos. Raramente o dia que começa mal dá a volta por cima e termina aprazível.
Pior é quando o começo ruim é recorrente, quando antes de o sol começar a se levantar de vez rumo ao topo do céu, uma aporrinhação sempre aparece. A mesma aporrinhação.
Pois bem, se quer saber o que é ter quase todos os seus dias embrutecidos pela chateação, basta usar a van como transporte público. É tiro certo, mais certo que a certeza, como diria um velho amigo.
Passei a usar o trem, pois. Melhorou, não vou negar, mas o trem faz das suas também. Claro, só de não ter que ouvir papo de cobrador e andar feito sardinha em lata já melhora muito o panorama de uma viagem matutina.
Mas, vira e mexe, eu preciso pegar a van, quer por atraso meu quer pelo atraso do trem. Da última vez que virei “passageiro da agonia”, não havia motorista falando ao rádio enquanto dirigia, nem cobrador abordando qualquer mulher na rua “nem”: o papo era o BRT, o ônibus articulado.
Uma senhora, sentada na primeira fileira de assentos, dizia que sua prima andara no BRT, que adorara a velocidade e a organização do novo modal urbano. O motorista e o cobrador estavam quietos – senão o último, que continuava a chamar todo mundo que passava pela rua de “nem” (Santa Cruz, Nem? Vai, Cesarão, Nem...).
A senhora, muita articulada, seguiu. Disse que não importava de ter que viajar em pé, desde que a viagem fosse rápida; que só de não ter que ficar parada no meio da viagem esperando a van encher de passageiros já se sentia mais respeitada; que podia sair de casa na hora programada, que em horários regulares saem os ônibus da estação terminal.
Os usualmente falastrões, motorista e cobrador, seguiam quietos, num silêncio que parecia asseverar o que dizia a mulher.
No meio do caminho a senhora pediu para descer. Despediu-se de todos. Respondi-lhe a gentileza com deferência. O cobrador logo fechou a porta.
O silêncio rompeu-se. Não antes de os olhares cruzados dos dois “topiqueiros”.
- É mole, magrinho? – disse o motorista ao virar a cabeça para trás, desviando o olhar do trânsito -, nego acredita mesmo nesse tal de BRT. Povo burro. E ainda acha que a van vai sumir.
A senhora não falou que a van vai sumir pensei.
- É.. – respondeu lacônico o cobrador, enquanto organizava seu troco entre os dedos. - Como é que era essa Cesário de Melo antes da van? – retorquiu quebrando o silêncio. - O povo ficava aí. Meia hora pra pegar ônibus. Lembra?
Lembro – respondeu outro passageiro, intrometendo-se no colóquio. - Lembro também que havia menos acidentes, menos infrações de trânsito e menos Ayrtons Sennas no volante. O povo tem sua culpa. Em vez de esperar um pouco, entra na van amassando todo mundo. O que vocês chamam de camarote.
Sorri. Se tem uma coisa que acaba comigo – de manhã, sobretudo - é cobrador de van passando com meio corpo de fora pela Cesário de Melo, oferecendo vaga no “camarote”, que é o corredor de acesso aos assentos. Já vi nove pessoas espremidas ali.
- Pra você ver – interpelou o motorista, enquanto passava pela direita um carro de passeio – tem gente andando em pé o tempo todo... a gente sempre vai ter passageiro pra pegar a van. Você acredita mesmo nesse BRT? – perguntou, como se quisesse ouvir a resposta dos cerca de sete passageiros que restavam no veículo.
- No BRT eu não sei se acredito, sei que em vocês não – respondeu outro passageiro, da última fileira.
Enquanto a conversa acontecia, um ônibus articulado passou pela van, em sentido contrário. Segui-o até o perder de vista. Quando dei por mim, o senhor que participara da conversa estava descendo. A van parou bruscamente, pegando-me distraído. Bati com a cabeça no assento da frente.
Quando o homem saltou, o motorista e o cobrador seguiram desdenhando do futuro que se lhes aproximava, fazendo piadas e contando vantagens.
-Vocês são prestadores de serviço público, sabiam? – disse-lhes.
Silêncio.
- Se não me engano, há uma permissão colada no vidro da frente - concluí.
O cobrador esticou o pescoço para procurá-la, o motorista apontou o dedo para permissão e olhou para trás, como quem quisesse dizer “não está vendo a minha permissão”?
- Pois é – segui -, se você é permissionário de um serviço público, como o nome claramente diz (não tão claramente, por isso fiz questão de usar o termo), serviço vem de servir, não faz sentido nenhum a maneira como vocês prestam esse serviço. Vocês param durante as viagens, abastecem seus carros, compram salgado e caldo de cana, calibram os pneus, desrespeitam os passageiros, põem uma montoeira de gente em pé no corredor, dirigem feito loucos... A prioridade do serviço prestado são vocês, não o público. Lembra? Serviço pú-bli-co. Público.
Silêncio novamente. Dessa vez duradouro. Foi assim até eu gritar lá do fundo o lugar aonde iria saltar.
Desci. Agradeci. Não ouvi resposta do cobrador, creio que ele deve ter respondido. Tanto faz se mal ou educadamente.
O dia estava ainda dando seus primeiros passos após a alvorada. Sorri novamente. A viagem foi divertida, pensei. Quem me dera poder viajar e dizer e ouvir sempre o mesmo.
Porém, se eu acordar tarde, se tiver que usar novamente as vans, provavelmente vou me aborrecer novamente. Mas nem tanto.
Partilhar do mesmo aborrecimento com outros passageiros fez-me perceber que, mais dia, menos dia, toda a coletividade vai se ver livre de um péssimo serviço prestado.
E meus dias poderão seguir normalmente sem pelo menos um tipo (e que tipo !) de aborrecimento matinal.
Estou contando os dias.
Vitor Gouveia
Muito legal vitor. ass:julie
ResponderExcluirlegal gostei muito,por que esse testo fala muito com as pessoa que precisa com certeza o [BRT]melhorou muito avidas das pessoas pertubadas legal vitor ass;alessandro gouvea.
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